No meio do caminho havia uma PEC

Finanças

*Por Luis Otavio Leal

O poema de Carlos Drummond de Andrade, “No meio do caminho”, inicia-se com o seguinte verso: “No meio do caminho tinha uma pedra”. O texto é curto, apenas duas estrofes, mas o poeta consegue deixar clara a importância que esse evento teve na sua vida. 

A PEC, que foi protocolada no último mês, trouxe, no seu texto, a autorização para que o novo Governo Federal gastasse até R$ 200 bilhões fora do Teto dos Gastos por quatro anos. Acredito que não há necessidade de um valor tão alto. Algo ao redor de R$ 140 bilhões já seria mais do que suficiente para cumprir com todas as promessas de campanhas, incluindo o Bolsa Família de R$ 600,00 (R$ 55 bilhões), valor com o adicional de R$ 200,00 aos R$ 400,00 que constam no orçamento, e o adicional de R$ 150,00 (R$ 15 bilhões) por criança até seis anos de famílias incluídas no programa. Além disso, se o Congresso Nacional aceitar os R$ 200 bilhões extras por quatro anos, teremos uma elevação da Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG) de algo entre 12 p.p. e 15 p.p. durante o mandato de Lula, o que levaria a DBGG dos atuais 77% do PIB para algo ao redor de 90%.

Antes de começar a falar do Banco Central do Brasil (BCB) propriamente dito, devemos discutir uma falácia tantas vezes repetida que acabou tomando ares de verdade: a dívida brasileira não é tão alta na comparação com outros países como os EUA (124% do PIB), a Itália (150%) ou mesmo o Japão (262%), portanto não haveria problema elevá-la. 

Intuitivamente já podemos derrubar esse argumento ao classificar os países por divisões, como no futebol. Os três países acima seriam times da Série A, já o Brasil estaria na Série B, portanto, dadas as receitas recebidas, os primeiros teriam uma capacidade de endividamento maior do que os últimos. Mas a falácia cai por terra mesmo quando comparamos as taxas de juros que são cobradas das dívidas dos EUA, da Itália e do Japão com a do Brasil. Enquanto por aqui as taxas são 10,5%, nos EUA são 2,0%; na Itália, 4,5% e, no Japão, 1,3%. Em termos monetários, o custo dos juros sobre a nossa dívida é de R$ 766,2 bilhões ao ano, mas, se tivéssemos uma taxa americana, seria de R$ 146 bilhões; com uma taxa italiana, seria de R$ 328,4 bilhões e, com uma taxa japonesa, de R$ 95 bilhões. Portanto, usar os países desenvolvidos para justificar que a nossa dívida não é tão alta é uma falácia perigosa. Para enterrar de vez essa discussão, quando comparamos nossa dívida com a de países da mesma “divisão” que a nossa, notamos que, enquanto temos algo ao redor de 77%, a média dos países emergentes está em 64%, ou seja, mesmo na Série B estamos mal colocados.

Esclarecida essa confusão com relação a nossa dívida, podemos entender o porquê da importância da discussão a respeito da PEC da Transição para a política monetária: quanto mais alta for a nossa dívida, menos atrativa ela será, mais desvalorizada será a nossa moeda, impactando a inflação, demandando juros maiores e, consequentemente, aumentando a nossa dívida, um círculo vicioso extremamente perigoso. 

O próprio BCB tem explicitado isso nos seus últimos documentos, inclusive no comunicado após a reunião de outubro, em que escreveu: “O Comitê ressalta que, em seus cenários para a inflação, permanecem fatores de risco em ambas as direções. Entre os riscos de alta para o cenário inflacionário e as expectativas de inflação, destacam-se […] ii) a incerteza sobre o futuro do arcabouço fiscal do país e estímulos fiscais adicionais que impliquem sustentação da demanda agregada, parcialmente incorporados nas expectativas de inflação e nos preços de ativos”. Além disso, o BCB chamou a atenção para o fato de que o mercado internacional está tolerante a desequilíbrios fiscais. Não citou nominalmente o Reino Unido, mas deixou subentendido a quem se referia: “O Comitê notou também a maior sensibilidade dos mercados a fundamentos fiscais, inclusive em países avançados”. Em bom português: se estão fazendo isso com um país desenvolvido, como é o caso do Reino Unido, imagine o que farão com um emergente, como é o caso do Brasil. 

Nesta semana temos a última reunião do COPOM de 2022, e não é esperada nenhuma mudança na Selic, atualmente em 13,75% a.a. Entretanto, o tom do Comunicado deverá ser mais duro do que nos trechos acima. Na última manifestação antes do período de silêncio que antecede a reunião do COPOM de dezembro, o presidente do BCB, Roberto Campos Neto, já deu uma amostra do que vem pela frente: “Há mensagem clara dos agentes econômicos que os arcabouços fiscais precisam ter limites. A gente não pode ter política monetária de um lado e política fiscal do outro […] o BC não faz política fiscal, usamos como parte da nossa modelagem”. Esse último ponto é relevante porque, se a piora do arcabouço fiscal pode afetar indiretamente a política monetária, piorando o risco-país, aumentando o dólar e, consequentemente, a inflação, na questão da modelagem, essa piora pode ser quase imediata. 

Uma variável extremamente importante nos modelos do BCB é a taxa de juros real neutra, que seria aquela que geraria uma inflação estável com a economia crescendo a seu nível potencial. Pode parecer um preciosismo acadêmico discuti-la, mas ela tem impactos importantes sobre a Selic definida pelo BCB. Por exemplo, agora os juros neutros se encontram ao redor de 4,00% a.a., mas durante o governo de Dilma Roussef, com o descontrole fiscal observado, ela chegou a 7,00% a.a. Ou seja, tudo mais constante, se os juros neutros voltassem àquele patamar, a Selic teria que estar em 16,75% a.a. e não em 13,75% a.a., como atualmente. Podemos pensar que o governo Dilma foi um ponto fora da curva e que a taxa neutra não voltaria a esses patamares. Teoricamente seria um pensamento correto, só que o mercado não está descartando totalmente esse cenário. 

Nesta semana tem COPOM e, assim como havia uma pedra no caminho do poeta, há uma PEC no caminho da redução dos juros por parte do BCB. Quanto mais alto o valor fora do Teto, mais tempo ficaremos com os juros nos patamares atuais. 

*Luis Otavio Leal é economista-chefe do Banco Alfa